AO VOLANTE: MÁRIO SILVA POR UM DIA
Fotos: Mário João Vale, Carlos Martins, Rui Queirós e Galeria do Crashed
O pior que pode acontecer a um
automóvel de competição é permanecer afastado das pistas por longos períodos.
Talvez tenha sido este o motivo que levou o meu amigo Zé António Mota Freitas a
perguntar-me se não queria levar um dos seus carros de corrida ao Gentlemen
Drivers Changing Gears de Braga no passado dia 10 de Março. E sendo o carro em
questão um histórico repleto de palmarés, já se adivinha a minha resposta...
Sem hesitar, respondi
afirmativamente, pois afinal estou há algum tempo a preparar o meu próprio
carro para correr e a vontade de rodar em pista torna-se irresistível. Aceitei
sabendo antecipadamente que o prazer de pilotar um carro de corrida é uma das
maiores motivações ‘’que me assiste’’...
A primeira impressão ao entrar no
habitáculo do carro é muito semelhante à de entrar num carro de ‘’ir à missa’’,
tantos são os elementos originais no habitáculo. Afinal, painel de
instrumentos, quartelas de portas e forro de tejadilho estão como à saída da
fábrica e até os vidros eléctricos funcionam!
Mas só uma alma muito distraída
deixaria de perceber que este carro é de facto muito especial e bastante
diferente dos populares Citroen que proliferam nas nossas estradas: Trata-se de
um carro com um inquestionável interesse histórico: nada menos do que o XC-05-05,
o Citroen AX GTI de Troféu que pertenceu ao grande piloto Mário Silva, ostentando
um palmarés inigualável em
Portugal.
Senão vejamos: em 38 provas do Troféu em que alinhou entre 1991 e 1995 alcançou catorze vitórias, vinte e seis pódios, duas vitórias no Troféu (1992 e 1994) e dois segundos lugares na prova organizada pela Automóveis Citroen (1993 e 1995 com Sande e Castro ao volante)! Só no circuito de Vila do Conde, conta com cinco vitórias em sete participações! Notável!
Para os mais atentos, as
diferenças para um carro de série são evidentes: o corta corrente está ali bem
à mão e a ausência de tecto de abrir torna-se suspeita (todos os carros
entregues pela Automóveis Citroen aos pilotos inscritos no troféu organizado
pela marca do ‘double chevron’ eram montados em carroçarias fechadas e igualmente
reforçadas). As belas e raras jantes Braid bipartidas também faziam parte das
especificações do Troféu.
Depois, as cadeiras de competição
e os cintos de quatro apoios dissipam as dúvidas, caso porventura permanecessem.
A linha de escape completa confere ‘’voz grossa’’ ao conjunto, a condizer com a
decoração ‘‘racing’’ a branco e encarnado da Filinto Mota que imediatamente nos
‘’teletransporta’’ para o ano de 1994: É uma decoração simples e marcante e
corresponde à segunda vitória alcançada no troféu.
Mecanicamente, desde os pistões à árvore de cames, passando pelo autoblocante e pelo raport mais curto, tudo se encontra como na época! Curiosamente, até os múltiplos autocolantes de verificação no arco de segurança estão imaculados e o selo da cabeça do motor está ainda no local! Contudo, a minha peça preferida é o volante Momo de camurça encarnada que se encontra um pouco desgastado pelo uso que teve e que confere ao carro uma extraordinária ‘’patine’’, lembrando que o XC-05-05 teve uma vida intensa, repleta de despiques, ultrapassagens e vitórias.
Depois de instalado no lugar
outrora ocupado por Mário Silva e por Francisco Sande e Castro, aperto o cinto
de 4 apoios de competição. Sinto-me contudo desconfortável pois a cadeira (ou
bacquet para os mais puristas) está demasiado alta e muito próxima do volante.
Tenho mesmo que inclinar a cabeça para que o capacete não fique encostado ao
Rollbar. Mas estou ali apenas para ‘’mostrar’’ o carro, como não se cansou de
referir Joaquim Cepeda, o responsável pela assistência do carro e por isso
tenho que adaptar-me à posição.
Sentado ao volante enquanto
Joaquim Cepeda acerta a pressão dos pneus e Liberto Freixo me ajuda a colocar o
cinto de segurança, vou passando as luvas no volante: Aquele é de facto um
verdadeiro carro de corrida repleto de história! E que privilégio estar aos
seus comandos!
Arranco das boxes sem pressas nem
atribulações. Afinal tudo aquilo é ‘’a feijões’’. Faço a primeira volta ao
autódromo Vasco Sameiro num ritmo calmo e moderado, para me habituar ao carro e
às suas reacções e para aquecer os fluidos, mecânica, pneus e travões pois a
pista, essa já conheço bem.
Uma curiosidade: apesar das
subidas de regime serem fulgurantes, o ponteiro do velocímetro desloca-se lentamente
não acompanhando a velocidade do carro. Isto explica-se em virtude da dimensão
das jantes Braid e dos pneus slick Michelin alterarem a desmultiplicação
prevista para o velocímetro. Não que isto interesse num carro de corrida, mas fica apenas o registo pela
curiosidade.
À segunda volta, ainda em ritmo
moderado começo as ultrapassagens. Na curva 1 a traseira solta-se. Mantenho o
pé no acelerador e corrijo com a direcção; o autoblocante puxa a frente e recoloca
a traseira no sítio. ‘’Parece fácil’’, pensei! No gatilho, grande atravessadela
prontamente corrigida. ‘’Se calhar devia aquecer mais os pneus’’, reflecti. Ou
seria óleo na pista? Na verdade estavam imensos carros parados em pista, outros
avariados e alguns a fumegar como frigideiras esquecidas no fogão. Podia
perfeitamente ser isso.
Nas reduções, sempre ponta tacão e
tento fazer as trajectórias correctas, ‘‘à piloto’’, tocando a corda das curvas
ou ‘’o apex’’ para os mais entendidos. O carro é divertidíssimo: manuseamento
da caixa rápido e preciso, muito rápido a subir de regime, travões eficazes e a
traseira bastante solta. Provavelmente o raport será um pouco curto para o
Estoril e então para Portimão nem se fala! Mas para Braga, para a Boavista e
para Vila Real julgo que será adequado!
O carro curva belissimamente,
inserindo-se com facilidade e inspirando-nos uma confiança crescente, que nos
permite andar cada vez mais depressa. Quando a traseira descola a tendência é
para antecipar a entrada na curva o que se corrige com o acelerador e a
direcção. Com mais treino será possível fazê-lo sem perder tempo.
Passadas duas voltas decido
atacar um pouco mais: Faço as duas esquerdas que antecedem a recta da meta em
ritmo forte e a escorregar em terceira a fundo; meto quarta ao tocar o
corrector, quinta mais à frente e puxo a ‘prise’ até perto das sete mil
rotações mas com cuidado para não ‘’cortar’’. ‘’Que carro giro’’, pensei por
momentos, lembrando-me a pista estava a acabar.
No final da recta encostado à
esquerda para a travagem para a curva à direita: Ponho pé no travão, faço ponta
tacão para quarta e depois terceira. Entro na curva tocando a linha de corda do
interior com o carro a levantar suavemente as duas rodas no corrector e a escorregar
para o lado contrario enquanto entra naturalmente na dupla esquerda parabólica
a seguir, sempre a escorregar para a direita, o que foi sendo corrigido com o pé
direito e com os braços. É perceptível a acção do autoblocante que nos obriga a
fazer força. Ultrapasso mais dois ou três carros levando a agulha do conta
rotações a cerca de sete mil rotações.
A ‘’chicane’’ é feita suavemente
por entre os correctores e na saída toca-se o da direita. A pequena recta
seguinte mostra-se curta e a esquerda seguinte é feita quase a fundo seguida de
uma direita rápida, um toque no travão seguido da direita seguinte, um pouco
mais lenta e com o ‘’relevé’’ ao contrário e que é feita invariavelmente com o
carro a escorregar para a esquerda, a subir o corrector interior, em duas rodas.
De seguida, duas esquerdas médias com o carro a teimar em alargar a trajectória
e que são fundamentais para se obter uma boa velocidade máxima na recta da meta
onde reentramos com o carro a resvalar às quatro rodas. Os pneus já estavam
quentes, por isso perguntava-me a mim próprio ‘’porque escorregaria tanto?’’ A
minha experiência com slicks diz-me que tal é inusitado, especialmente rodando
longe dos limites, mas mesmo assim decido continuar. Qual seria o motivo,
afinal?
A resposta a esta pergunta viria
no final da volta seguinte e de forma esclarecedora: Nas duas direitas que
descrevi no parágrafo anterior, a traseira soltou-se mais depressa e ainda mais
do que nas voltas anteriores. A primeira curva ainda fiz com o pé direito no
fundo, mas tentar a segunda já era arriscado, pois a direcção estava quase no
extremo oposto tentando contrariar aquela traseira rebelde. A opção foi
deixá-lo ir, fazendo um ‘’tete’’ sem tocar em nada obviamente, mas causando
alguns calafrios.
De seguida foi tentar recolocar
em marcha o motor, tarefa que se revelou demorada. Por momentos ainda pensei
que era o carro a fazer ‘’birra’’, exigindo um ‘’piloto à séria’’. ‘’Bolas,
virou-se mesmo a mim’’, pensei!
Fui às boxes e ainda regressei à
pista mais um par de vezes naquela tarde mas apenas para tentar conhecer melhor
o carro e também, porque não dizê-lo,
para desfrutar do momento.
No intervalo de ‘’stints’’ foi-me explicado o porquê da tendência do carro fugir tanto, numa experiência de alguma forma semelhante a rodar em pisos de neve: É que o carro encontra-se de tal forma original que os pneus slicks que estão montados nas elegantes jantes Braid de catorze polegadas de diâmetro datam de 1995. São excelentes para expor o carro mas um perigo para a pista! Alguns dias antes do evento, JMF pergunta-me se deveria comprar um jogo de pneus para o carro, ao que respondi que não. Hoje, a resposta seria certamente diferente!
No último momento ainda foi possível levar um amigo no seu baptismo em pista naquele carro de corrida cheio de pedigree. Mas foi sol de pouca dura pois entretanto a pista fechou e a gasolina já era pouca pois nas direitas antes e depois da ‘’curva do gatilho’’ o carro já falhava.
Alguns dias depois do evento, enquanto
partilho a experiência com os leitores da Topos & Clássicos, apetece-me
partilhar também com eles um pensamento:
‘’Se alguma vez me tivessem dito
que viria um dia a pilotar num circuito o carro do Mário Silva e do Sande e
Castro que tantas vezes vi a ganhar no Circuito de Vila do Conde, certamente
responderia que seria mais fácil acertar na chave do Euromilhões.’’
Por isso vou terminar: ‘’Acho que
vou ali registar a minha aposta e volto já!’’
Obrigado pela experiência e até
breve!